Algumas considerações sobre a citação do cônjuge em processo executivo

O processo executivo, enquanto meio judicial adequado para requerer as providências idóneas a espoletar coativamente a obrigação que é devida ao credor, pode contender com matérias familiares ao trazer à colação as regras patrimoniais previstas no Código Civil (“CCiv”). Pensamos, nomeadamente, no regime tripartido de citação do cônjuge não executado.

Em geral, o cônjuge do executado pode ser chamado à execução em três contextos bastante distintos, embora a mera letra da lei por vezes não sublinhe esta marcante diferença: (a) o cônjuge é citado nos termos do art. 740.o, Código de Processo Civil (“CPC”); (b) o cônjuge é citado nos termos do art. 741.o ou 742.o, ambos do CPC; (c) o cônjuge é citado nos termos do art. 786.o, n.o 1, al. a), ab initio, CPC.

Primus, no caso do art. 740.o a lei dita que quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns. Ora, e não obstante a interpretação do artigo per se é clara, a contraposição da letra do art. 740.o com a dos arts. 740.o-741.o(1) incute no leitor algumas dúvidas. Note-se, o traçar de fronteiras entre estes artigos é profundamente relevante, uma vez que ambas as situações atribuem ao cônjuge citado um conjunto de poderes bastante distintos: no caso do art. 740.o, o cônjuge não passa a ser parte na execução, sendo que se limita a requerer a separação de bens ou a juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação tenha sido requerida; no caso dos arts. 740.o-741.o, o cônjuge passa efetivamente a ser parte na execução.

Assim, a nosso ver, a cabal interpretação articulada de ambas as hipóteses passa por uma cuidada definição do âmbito de aplicação do art. 740.o. Com efeito, apenas se deve citar o cônjuge para requerer a separação de bens ou a juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação tenha sido requerida quando a dívida é própria (2). Passando a explicar, a lei ao afirmar claramente que o art. 740.o apenas se aplica quando a execução seja movida contra um só dos cônjuges, a bom rigor, o que quer transmitir é que o supramencionado artigo apenas se aplica quando a execução apenas se deva mover contra um dos cônjuges. Se a dívida fosse comum, e fosse possível citar o cônjuge nos termos do art. 741.o, então estaríamos a permitir ao exequente vedar ao cônjuge a possibilidade de ser parte no processo. Mas nem isto faz sentido, visto que, em geral, estrategicamente não seria sensato evitar executar ambos os cônjuges quando a dívida é comum, uma vez que assim o executado diminui o património que está à sua disposição. Portanto, acreditamos que a hipótese que a lei pretende resolver é exatamente a situação em que a dívida é própria e não pode ser suscitado um incidente de comunicabilidade da dívida.

Mas mesmo que assim não se entenda, há que invocar a segunda parte do art. 740.o: “[…] forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado […]”. Ora, qual terá sido a ratio em acautelar uma situação, não conferindo ao cônjuge a qualidade de parte no processo, em que foram penhorados bens comuns do casal quando não se conhecem bens próprios do casal? Por que razão é que a lei constrói uma hipótese que parece transmitir a ideia de que se tentou atacar primeiro o património próprio do cônjuge executado? Cristalinamente, a resposta é apenas uma: porque a dívida é própria.

Para terminar quanto à articulação entre o art. 740.o e os art. 741.o-742.o, conclui- se o seguinte: aquele aplica-se quando é instaurada uma execução contra um dos cônjuges para pagamento de dívida própria; estes aplicam-se quando é proposta uma execução contra um dos cônjuges e seja suscitada a comunicabilidade da dívida, sob pena do cônjuge poder embargar de terceiro.

Secundus, trate-se, agora, da compatibilização entre o art. 740.o e o art. 786.o, n.o 1, al. a), ab initio(3). Prevê este artigo, à margem dos demais, que o cônjuge do executado deve ser citado para adquirir a qualidade de parte na execução (art. 787.o, n.o 1, CPC) quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente (por exemplo, 1682.o-A, CCiv). Imagine-se, então, que estamos perante um bem comum que foi penhorado, nomeadamente a casa de morada da família: deve o cônjuge ser citado por via do art. 740.o, n.o 1, ou por via do art. 786.o, n.o 1, al. a) (note-se que ambas as situações são distintas, tal como admitido pela lei através da utilização da disjunção “ou” na segunda parte do art. 786.o, n.o 1, al. a))?

A nosso ver, o verdadeiro fator que fundamenta a primeira parte do art. 786.o, n.o 1, al. a), é a situação do bem que é penhorado, ou seja, importa distinguir se o bem é próprio ou comum. A nosso ver, caso o bem seja próprio, então já ganha forma a regra preceituada no supramencionado artigo. Se foram penhorados bens comuns, ainda que o executado não os possa alienar livremente, então, e dependendo do carácter da dívida, “deve ser pedida a citação do seu cônjuge para que este requeira a separação de bens […]”(4).

Em conclusão:
• Caso a dívida seja própria e o bem penhorado seja próprio: não estamos perante nenhuma das três formas de citação;

  • Caso a dívida seja própria e o bem penhorado seja comum: o cônjuge deve ser citado nos termos do art. 740.o, n.o 1, CPC;
  • Caso a dívida seja própria e o bem penhorado seja próprio, mas o executado não o pode alienar livremente: o cônjuge deve ser citado nos termos do art. 786.o, n.o 1, al. a), CPC;
  • Caso a dívida seja própria e o bem penhorado seja comum, mas o executado não o pode alienar livremente: o cônjuge deve ser citado nos termos do art. 740.o, n.o 1, CPC;
  • Caso a dívida seja comum e o bem penhorado é comum: o cônjuge deve ser citado nos termos dos arts. 741.o ou 742.o, sob pena de poder embargar de terceiro.
  • Caso a dívida seja comum e o bem penhorado é próprio: o exequente pode escolher se suscita ou não o incidente de comunicabilidade da dívida;
  • Caso a dívida seja comum e o bem penhorado é próprio, mas o executado não o pode alienar livremente: o cônjuge do executado deve ser citado nos termos do art. 786.o, n.o 1, al. a), CPC, caso não tenha sido suscitado o incidente de comunicabilidade da dívida;
  • Caso a dívida seja comum e o bem penhorado é comum, mas o executado não o pode alienar livremente: o exequente deve suscitar o incidente de comunicabilidade da dívida.

1 Respetivamente: “Movida execução apenas contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum; a alegação pode ter lugar no requerimento executivo ou até ao início das diligências para venda ou adjudicação, devendo, neste caso, constar de requerimento autónomo, deduzido nos termos dos artigos 293.o a 295.o e autuado por apenso”; “Movida execução apenas contra um dos cônjuges e penhorados bens próprios do executado, pode este, na oposição à penhora, alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum, especificando logo quais os bens comuns que podem ser penhorados, caso em que o cônjuge não executado é citado nos termos e para os efeitos do n.o 2 do artigo anterior”.
2 Neste sentido, MENDES, João de Castro; SOUSA, Miguel Teixeira de (2022). Manual de Processo Civil – Volume II. AAFDL Editora, p. 873.
3 “Concluída a fase da penhora e apurada, pelo agente de execução, a situação registral dos bens, são citados para a execução: a) O cônjuge do executado, quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente […]”.
4 Neste sentido, MENDES, João de Castro; SOUSA, Miguel Teixeira de (2022). Manual de Processo Civil – Volume II. AAFDL Editora, p. 875.

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