A cobertura de riscos nos seguros de vida, nos casos de invalidez total e definitiva dos segurados
Comentário ao Acórdão do T.R.Lisboa, 24/10/2019
Atenta a relevância do tema e as dificuldades acrescidas que os tomadores do seguro e os seus familiares têm encontrado para ser ressarcidos quando se encontram numa situação de invalidez (superior a 60%) e celebraram um seguro de vida com esta cobertura adicional, merece o cuidado da análise. Sendo fundamental atender à casuística concreta e ao rigor do estipulado contratualmente, não deve ser esquecido que grande parte das vezes se trata de um dos momentos mais difíceis das vidas dos segurados e familiares, onde tantas vezes o juízo crítico pode estar tomado pela emergência da infeliz ocorrência. O ponto de partida é um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que entre vários, acrescenta perspectivas relevantes.
Em regra, está em causa um litígio respeitante a um contrato de seguro de grupo do ramo vida, no qual estava coberto não apenas o risco morte, mas também o risco relativo à invalidez total e definitiva da segurada. A questão que assola os beneficiários é a seguinte: qual a razão de ter consagrado uma cobertura adicional de 60% de invalidez e mesma ter sido reconhecida e no momento de ser ressarcidos ser colocado o entrave adicional de o beneficiário ter que se encontrar completamente impossibilitado de exercer qualquer trabalho, necessitar de auxílio de terceiros para efectuar, com normalidade a sua vida ?
A matéria controvertida prende-se habitualmente com a garantia adicional que os contratos de seguros consagram nas condições particulares em caso de invalidez total e definitiva. Enquanto nas condições particulares da apólice consta que a incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez é fixada em 60%, uma cláusula inserta nas condições especiais define o conceito de invalidez total e definitiva como uma restrição de tal ordem que invalida a limitação dos referidos 60% de incapacidade (que se assume como o ponto a que os segurados atendem para a celebração do seguro).
É pois neste sentido que se parte para o comentário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (1), para que se possa compreender a
amplitude do que deverá ser considerado na presente análise.
No sumário do Acórdão em apreço pode ler-se:
“3. Num seguro de incapacidade o risco que se pretende acautelar são as consequências que para o segurado podem resultar da circunstância de ficar numa tal situação de debilidade funcional que o torna incapaz de fazer a sua vida normal e de auferir rendimentos pelo seu trabalho, em razão de invalidez absoluta e definitiva, com diminuição das capacidades para os atos normais da vida diária espelhadas numa incapacidade de 60% ou mais, sendo nessa previsão que, com lealdade e seriedade, se encontra o equilíbrio das prestações.
4. O conceito de incapacidade estabelecido em cláusula contratual geral que exige, na consideração da situação de invalidez absoluta e definitiva, que a pessoa segura necessite de recorrer de modo contínuo à assistência de terceira pessoa para efetuar os atos normais da vida diária, identificados como os mais básicos- comer, vestir-se e cuidar da sua higiene – exigindo na prática uma total e absoluta falta de autonomia, quase só equiparável a um estado vegetativo, já nada tem a ver com a afetação da capacidade de trabalho e de obtenção de rendimentos ou com uma diminuição das capacidades para o exercício de uma vida normal que sempre é indiciada por uma incapacidade funcional de 60%, antes vai além deste conceito e da razão de ser do contrato, determinando um desequilíbrio das prestações contratuais e frustração da confiança do segurado, sendo abusiva por desproporcionada e contrária boa fé e por isso nula.”
Ora, o tema divergente reside no facto de nas condições particulares da apólice constar que a incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez era fixada em 60%, uma cláusula inserta nas condições especiais definia o conceito de invalidez total e definitiva como “a invalidez física e mental que, após completa consolidação, deixe a pessoa segura completamente impossibilitada de exercer qualquer trabalho que dê remuneração ou lucro, necessitando de auxílio de terceira pessoa para efectuar, com autonomia, os actos normais da vida”.
O Acórdão em causa, parte da aplicabilidade do regime das Cláusulas Contratuais Gerais aos contratos de seguro, tendo por base o constante do Decreto-lei n.º 446/85 de 25 de Outubro, na sua redacção actual.
Este diploma legal estabelece como definição de cláusula contratual geral aquela que é elaborada sem prévia negociação individual à qual o proponente ou destinatário se limita a subscrever ou aceitar, a decisão em apreço conclui, e bem, que as cláusulas gerais e especiais de um contrato de seguro são subsumíveis ao conceito de cláusula contratual geral. De facto, o segurado apenas se limita a aderir às cláusulas do contrato mediante a subscrição da apólice de seguro.
Salienta-se assim que estando perante cláusulas que resultam da imposição de uma das partes, sendo fixadas previamente e sem possibilidade de negociação, será forçoso considerar que os contratos de seguro são contratos de adesão.
Mais importante do que esta afirmação, será que ainda que não se concluísse pela natureza de contrato de adesão, seria sempre aplicável o DL em apreço a cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo o destinatário não pode influenciar, ou seja ainda que o contrato de seguro não fosse qualificável como um contrato de adesão o regime das cláusulas contratuais gerais seria sempre aplicável às cláusulas constantes do contrato previamente determinadas por uma das partes (in casu, a seguradora).
Sendo aplicável o regime vertido no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, a decisão em apreço chama a atenção para a análise da
validade das cláusulas contratuais constantes do contrato de seguro à luz do preconizado nos artigos 15.º e 16.º do diploma em causa. Estes preceitos estabelecem a o princípio geral da proibição de cláusulas contrárias à boa fé, concretizado com base em valores fundamentais de direito, especialmente na confiança suscitada nas partes pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa e no objectivo que as partes visaram atingir com a celebração do contrato.
Note-se que no que concerne à vertente do princípio da confiança, a cláusula será contrária à boa fé quando a confiança depositada pela contraparte naquele que predispôs a cláusula seja defraudada por resultar da análise da mesma que confere ao predisponente uma vantagem injustificada.
Já no que diz respeito aos objectivos que as partes visaram atingir com a celebração do contrato, resulta da decisão em apreço que teremos que atender ao equilíbrio contratual, sendo contrária à boa fé a cláusula que ponha em causa o equilíbrio contratual de forma desproporcionada desprotegendo excessivamente o aderente.
Ora, a decisão em apreço conclui que uma cláusula em que o predisponente limita de tal forma a possibilidade de preenchimento da condição do acionamento do seguro, exigindo que o segurado necessite de auxílio de terceira pessoa para os actos de se vestir e alimentar, efectivamente apenas visa a protecção dos seus interesses num sentido que vai bastante para além da razão de ser do seguro. É que, como afirma a Douta decisão, o segurado pode estar numa situação de limitação e incapacidade de fazer a sua vida normal por não poder conduzir, praticar uma actividade física ou até pegar em pesos, mesmo que ainda se consiga vestir e alimentar.
Em suma, resulta do Acórdão a desproporcionalidade nas exigências consagradas para que se verifique uma situação de invalidez total e definitiva, pelo que será a cláusula em apreço considerada nula por ser contrária à boa fé.
Para além da invalidada da cláusula, o aresto em causa evidencia que parece resultar do regime das cláusulas contratuais gerais, que a seguradora ao estabelecer que o estado de invalidez teria sempre que ser aceite pelos seus clínicos poderá incorrer em abuso de direito. É que não pode ser a própria seguradora a validar ou não a situação de invalidez do segurado, favorecendo naturalmente a sua posição contratual, devendo ao invés a situação de invalidez, em caso de litígio, decorrer de uma avaliação objectiva feita por terceiro.
Conclui-se, em suma, que pese embora o clausulado dos contratos de seguro possa ser previamente determinado pelo proponente enquanto contrato de adesão, não poderá o mesmo enquanto contraente mais forte redigir as cláusulas do contrato de forma tal que lhe retire qualquer utilidade para a contraparte.
(1)Disponível para consulta em
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/bef6c66518e88cbd802584ab00342f50?OpenDocument, cuja relatora foi a Desembargadora Inês Moura
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